quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Soldado Noguchi- um outro sonho

Desculpa, mas você morreu. Morreu nos meus braços, eu testemunhei. Morreu enquanto bebia dum leite quente e tenro, enquanto o sugava avidamente de meus seios incestuosos. Mas logo logo toda a sua volúpia láctea se condensaria, se fermentaria e se transubstanciaria no meu corpo. Um corpo antes delineado em curvas suaves, antes apenas nuance, agora é um corpo pesado, sinuoso, clandestino. Você não suportou o peso dessa estalactite abissal que incide pendular na sua vida. O adorno sobre o seu pescoço, o seu colar, era na verdade uma Boa constrictor.Nenhum toque nunca te deu tanto tremor, tanto espasmo. Tesão? Obsessão?Podridão? Uma sinonímia boba, supérflua, tudo uma taxionomia vã que só vai rotular essa latência conspícua que você experimentou comigo.Só eu sei os teus dispositivos ocultos.E você gozou da minha presença enquanto pôde. Se não fosse a fermentação.E aquela velha amargura, aquela antiga inquilina, volta a fazer casa em ti, e de vez em quando insiste em querer sair em golfadas. Mas, no fundo, você tem saudade. Você não queria ter conhecido como é sentir isso com alguém. Ainda mais alguém como eu, que vivo no pulso cru das profundezas. Sou um eco gutural que entoa do teu centro e ao atingir sua superfície(ou a lembrança de minha mão em tua pele) sofre reflexão e volta.Você não saberia sustentar isso.E agora o leite que posso te oferecer amargou. Seus pais não acreditam que você morreu.Eles acreditam ainda que alguém vai te oferecer o que eu te ofereci.E ainda te esperam, na sua casa, lá no fim do túnel. Mas você morreu. É um fato: você morreu.

terça-feira, 3 de agosto de 2010

O último dia de um suicida

Mas são tantas as opções, as possibilidades.Olha fixo para o pedaço de vidro que estava a sua mão no momento.Na cabeça de um suicida não há lugar para vírgulas, reticências aspas dois pontos ou travessões apenas para pontos finais flashes relances pensamentos tortos tortuosos cenas emolduradas por uma mente iconoclasta. A mente iconoclasta concentra em si todos os elementos do cosmos fogo água terra ar e tudo e todos conspiram contra si sufocando-a. Não é o sofrimento que alimenta essa mente é o vazio a impossibilidade de tocar o audível de não ver o palatável de não ouvir o incolor de não saborear o intocável. Um cansaço. O caco de vidro segue em suas mãos.Nessa hora é que vem o momento da interrogação. Mas nem a interrogação é interrogação é um ponto final camuflado. O que seria da vida dali em diante.Seria esse vazio a falta de liberdade os limites que a vida nos impõe. A morte não tem limites. A morte é uma linha reta infinda enquanto a vida é um segmento de reta e para o suicida um ponto. Se é final ou não já é outra história. Talvez não haja ponto final porque não há fim para o que não teve início. Só há início quando há sensação plena e liberdade para sentir.Talvez a mente suicida esteja mesmo fatigada de meias-sensações meias-cores meios-sons meios-sabores.A vida é subalterna à morte. Sempre foi assim e sempre será. O ponto impera sobre as vírgulas reticências e afins assim como a morte impera sobre o caleidoscópio de semi-sensações que é a vida. Só a mente suicida é capaz de compreender que o caos de cores no caleidoscópio são sentidos estilhaçados que as mentes comuns limitam-se a contemplar como expectadores isentos e insossos. O que ela quer é muito mais que restos farelos vestígios resíduos. Quer viver intensamente e caleidoscopicamente. O vidro na mão.Se há sangue ou não.

quinta-feira, 24 de junho de 2010

Les amants réguliers


"Il me manque le repos, la douce insouciance qui fait de la vie un miroir où tous les objets se peignent un instant et sur lequel tout glisse." Alfred de Musset

O ovo da serpente

"Fashion it thus: that what he is, augmented,
Would run to these and these extremities;
And therefore think him as a serpent's egg,
Which, hatch'd, would as his kind grow mischievous,
And kill him in the shell" William Shakespeare


11 de janeiro de 1923- Os jornais anunciam a invasão das margens do Rühr,centro da produção alemã de carvão, ferro e aço,pelos franceses, que buscavam a compensação financeira que a República de Weimar lhes devia.Cenário:Colapso econômico, desemprego em massa, hiperinflação e, o mais agravante: um povo desiludido. Velhos cansados, jovens fatigados e fartos.Ideologias ocas eclodiam nos quatro cantos do mundo. A única coisa que unia aquela massa volátil era a seara de uma ciência imbuída de uma racionalidade sem pudor. O império da lógica e da técnica lobotomizava o homem massa e o sedava perante as intempéries do progresso. Não tardava a instaurar-se um positivismo amoral.A frenologia voltava-se para o estudo de uma mente cada vez mais desumana.Teóricos de importância já preconizavam o atrofiamento das instituições liberais, que num futuro não muito próximo não seriam mais que órgãos vestigiais num sistema dominado pelo despotismo e pela intolerância. "A democracia pressupõe homogeneidade", e para alcançar essa homogeneidade instaurou-se uma simbiose um tanto ou quanto insólita entre democracia e ditadura. A Carta Magna era como um suicida fundamentalista que porta uma bomba-relógio cuja pólvora era um artigo dessa mesma Constituição, o inflamável Artigo 48.A Constituição se pôs aos ares em nome de sua própria preservação, da preservação de seus preceitos fundamentais frente ao caos social instaurado. Tudo isso fora intuído pelos melhores intelectuais da época, porém nada poderia ser feito, nada poderia aplacar a fúria de uma manada de homens oprimidos, por dez anos sujeitos à degradação e ao peso da culpa pela destruição causada em 1918. Tudo de que precisavam era de um líder que lhes guiasse, que desse sentido a suas vidas miseráveis. A ascensão de uma personalidade carismática era inevitável.Esse cenário demonstra como um povo pode fornecer o vitelo que alimenta o embrião de uma serpente. Como esse ovo se rompeu, e como a serpente tomou proporções colossais, ai já é outra história...

domingo, 20 de junho de 2010

Lá se vai o mago...

Sempre ouvimos dizer que o fogo purifica. Purifica da cegueira, das intermitências da vida, das vicissitudes da morte, e também dos frequentes espasmos que a lucidez nos causa. Reduz a cinzas a ignorância, a cegueira crônica que recai sobre a humanidade, mas deixa incólume a inconsciência. O fogo faz mais, o fogo transforma. A transubstânciação da ignorância na inconsciência. E por inconsciência não se diz fechar os olhos, não ver. Inconsciência é mais uma "transciência" do mundo, é mais não ver o imediatamente óbvio, o imediatamente tátil e ver além do conforto da existência de Deus. Ver é encarar, é "olhar o mundo gravemente, com olhos severos e avaliadores", é levantar do chão.Ao lançar-se sobre suas labaredas e chamas os substratos da vida, encontra seu ponto de fusão e cria um amálgama orgânico entre estes e as intermitências da morte. Essas ligas tornam então a relação entre uma e outra mais palatável para nós, sem a necessidade de uma entidade supra-humana, metafísica que torne plausível o sofrimento. Nós, cegos e carentes de Deus, encontramos em Saramago mais que um escritor, mas um mestre, um mago que sempre procurou nos abrir os olhos. Agora, além de carentes de Deus, estamos carentes de nosso mago, e nos sobra apenas o desejo de que o fogo não apague um homem, mas deixe ardente e viva a sua memória. Que o mundo não fique mais cego.

segunda-feira, 19 de abril de 2010

Exílio



". . . Deixarás tudo aquilo que te agrada
mais profundamente; é esta seta a tal
logo no arco do exílio disparada.

E provarás como é falto de sal
o pão d' outros, e como é dura estrada
subir e sair pelas escadas de outros."


Com essas palavras Cacciaguida profetiza a Dante seu exílio. Exílio de quê? Após traspassar as árduas e tortuosas estradas dos Condenados, provar do pão sem sal do Purgatório(já que não há tempero suficiente para que se possa ser rotulado por Bom ou Mau), ascender pelas divinas escadarias do Paraíso, poderia alguém ainda se sentir exilado?Há em mim uma vacância entre Eu e Mim. Sinto-me insossa como uma purgada. Ao sentir na carne a destemperança infernal, abruptamente me aproximo de mim. Lançada, caio de bruços. Sinto a febre de um encontro incestuoso. Um encontro a sangue vivo. Tenho medo da hemorragia incessante, de não voltar a mim. Que as plaquetas não deixem eu fugir furtivamente por estes poros. Esses poros que a espera pelo momento da coagulação estampou na minha pele. Sigo exilada, nessa ansiedade hemofílica, enquanto ele não coagula e me tece com fibra indivisível o Corpo e o Espírito. Esses polímeros que me grudam em coesão divina, sim, são o Paraíso.E então poderei ser Boa ou Má, ser condenada ou canonizada, nunca insossa, nunca pela metade.

domingo, 21 de março de 2010

Sermão dos peixes a Santo Antônio

Verse o verso
Remexa
Vire ao avesso
Agite-o bem
antes de usar.
E nele talvez encontre um terço
um cântico dos cânticos,
um meio,
um desvelo.
E se mesmo assim a terra não salgar
Sê inteiro.

sábado, 20 de março de 2010

Parcas

"Laura está atrasada, como sempre"-essas palavras perfuram o ar de uma rispidez, como um falcão que após atingir em cheio sua presa se lança ao chão em voo oblíquo."Se demorar mais o café vai esfriar". "Val, você já devia ter se acostumado com os atrasos da Laura...ela é enrolada, você bem sabe...". Bel estava tesa. Passara um tempo no exterior para completar seus estudos em Psicologia e era a primeira vez que via suas irmãs desde então. "Você não esteve com ela enquanto eu estive ausente?"-arriscou. "Encontrei umas duas vezes só para resolver o lance da papelada e o dinheiro de mamãe. Mas não quero mais falar sobre este assunto. Aborrece-me muito. Sem falar que Laura é muito pedante, enche a boca para dizer que se formou na melhor faculdade de Direito do país e acha que só por isso pode interferir na questão do seguro.Também mamãe deixa tudo na mão dela...". Isabel está cansada. São anos tentando mediar. Pensa que todos os seus anos de estudo foram em vão, e que nem Freud nem Jung poderiam ajudá-la."Val, ela sabe o que tá fazendo. Ela conhece os trâmites. Além do mais, todas vamos receber a nossa parte, disso você pode ter certeza.". Valentina enrubesce. "Vocês sempre passando a mão na cabeça dela...".Isabel lembra-se de um episódio na infância. Era num dia de Natal, e seus pais haviam dado três presentes e propuseram que elas mesmo escolhessem qual queriam, sem saber o que tinha dentro. Valentina foi a primeira a tirar. Era um kit de costura, que vinha com linhas, alfinetes, miçangas e tudo o que tinha direito. Depois tirou Isabel, que ficou com um livro de histórias. E por fim Laura ficou com uma boneca. Ninguém poderia imaginar no que uma simples despretensiosa brincadeira natalina poderia redundar. Laura ficou insatisfeita. Aquela boneca era boba demais, e já era uma "mocinha", grandinha demais para um brinquedo bobo daquele. Bel tentou interferir. "Laurinha, você é nova demais pra brincar com agulha, é perigoso, deixa a Val ficar com a costura, porque ela já é mais velha e vai saber usar...". Aquele foi o seu primeiro contato com a insatisfação crônica de ambas e com a sua imcompetência em fazer elas valorizarem o que lhes era reservado(todos os dias liam uma passagem da Bíblia, embora nunca levassem em consideração a passagem eclesiástica "Eis a sua porção sob o Sol...") Era o gérmen da frustração, o caule irrompido. Esse caule logo desabrochou numa árvore seca e contorcida, em arbusto agreste, quando, no dia seguinte, tomada por um impulso Laura pega uma tesoura e corta abruptamente a flanela que a primogênita vinha tecendo com tanto engenho e arte. Desde então, Valentina desenvolveu o hábito inconsciente(ou talvez transciente?)de se sentir sabotada pela caçula.E agora estavam lá as duas de novo, 23 anos depois. Toca a campainha. É Laura. Valentina já não tem ressentimentos. Tem ress

segunda-feira, 8 de março de 2010

Águas do Rio Lethé

Certo dia Karin senta-se às margens dum rio. Karin gostava de observar o curso do rio, mas não tinha aquela simplicidade automática que leva as pessoas a pensarem clichês-como por exemplo de como a vida se assemelha a um rio e como nós não somos os mesmos a cada instante que passa."Essa simplicidade forjada"-pensava com desdém. "Ora pois, quem quer viver não pensa na vida, apenas vive, vive cada segundo atrás do pensamento, vive o "it"." Karin, apesar de sua origem tcheca, vivia desde os oito anos no Brasil com sua avó para se recuperar dos pulmões. Ninguém nunca disse-lhe ao certo o que tivera dentre todas as pneumas, pleuras e plasmas da vida. A única coisa que sabe é que seus pais estavam ocupados em salvar comunismos e ideologias e lutar por seu país-algo a ver com os russos. Eles tinham expectativas. Enquanto ela só tinha expectorações. Não podia continuar. O Brasil tinha um clima mais propício para pessoas de aspirações tísicas como a dela. Veio com sua irmã mais velha, Ana. Foi com Ana que Karin despertou para a vida-certa vez Ana lia um livro chamado "Água viva" de uma escritora que embora tivesse origem ucraniana também tinha passado maior parte de sua vida em terras brasileiras. E aquele nome " Água viva" lhe despertava particular curiosidade, porém, só mais tarde veio a de fato ler o livro.Lembrou-se que uma vez Ana e sua avó a levaram para conhecer um aquário, e Ana apontou prum aquário cheio de medusas e disse: "Olha Karin, isso que são águas vivas". Karin fascinou-se.Até que seu transe foi cortado pela voz onomatopeial de sua avó: " São animais terríveis. Esses tentáculos queimam que só". A fascinação de Karin foi então tipafiada , estilhaçada instantaneamente por apenas uma onomatopéia fraseal.Desde então nunca mais pensara em águas vivas. Só voltou a pensar nelas nesse momento, perante o rio. "Será que em algum lugar do instante existem tentáculos emaranhados, uma selvageria hídrica e fluida, porém sólida em nos fagocitar e devorar pra si?"- mas logo conclui: " Mas o instante só é arriscado para quem pensa nele, eu estou além e aquém do pensamento-sou como o peixe palhaço andando por entre vis medusas. Sou um todo de pele, sangue e saliva completamente invulnerável às investiduras do instante contra mim. Há em mim qualquer artifício protéico, qualquer glóbulo branco que me protege das armadilhas que o pensamento nos impõe." O melhor mesmo é não pensar em viver. Ou melhor esquecer de pensar em viver.Lembrou-se então dum poeta português- já que há muito havia substituído o ato de pensar pelo de ler-que dizia assim:

"Se alguém pensasse na vida,
Morria de pensamento.
Por isso a vida vivida
É essa coisa esquecida
Entre um momento e um momento."

E pensou:"Pois então, poesia é pensamento?". Por via das dúvidas, fez como que uma concha com as mãos e pegou um bocado de água do rio Lethé e bebeu.

quarta-feira, 3 de março de 2010

Eu coloro (sobre o Tempo defectivo)

Te coloro o dia defectivo. Abolo tudo que põe jaça nessa tua escala cromática exorbitante que eles chamam tempo. E cronológica vou pintando em espasmos sobre a tua face, assim como quem pinta em óleo sobre tela, as tuas horas. Eu coloro. Assim mesmo. Audaciosa e defectivamente. Não me adeqüo. Quando dôo-pois não é fácil viver em autocombustão incessante- demolo. Pois delinqüo? Logo esculpo em rubor os teus minutos.Mas não me exauro. Brando, bramo e explodo em segundos fumegantes.

terça-feira, 2 de março de 2010

Orfeu

Qualquer nervo pulula em mim. Pulula ritmicamente com uma música cega que vem de qualquer cavidade do meu ser. Esse ocaso que sou é apenas a moldura de um vácuo. Vim de terras muito profundas, do Submundo, tragado por uma corola fui arrastado para um emaranhado de vis raízes. No mundo dos vivos essa minha sinfonia não teria resposta no vazio, doce univitelino verde que é o eco dos tons. Já aqui, no Submundo, o vazio tem o seu lugar, tem réplica de sangue, xilema e floema. Aqui a minha música tem o seu lugar. Hades me concedeu gentilmente a beleza do caos, do inacabado, do gasto, do desnutrido, do erodido. E minha música vai causando miasmas e contorções em tudo que toca. Eu não quero mais emergir, eu não quero mais voltar. Tudo lá em cima é um simulacro, e aqui é uma grande argamassa de escuridão e selvageria, mas meus acordes conseguem alcançar a coifa, o ponto último e final de tudo que existe. Um feixe de luz e a vejo enfim. Posso emergir apenas por um caminho uníssono, embora não unilateral.Há vários lados nesse círculo, e então hesito qual lado seguir. Caio na inércia. Eu fico é com a tensão delicada da minha lira,com o frágil equilíbrio de uma membrana tesa.

segunda-feira, 1 de março de 2010




O ready made nomeia a principal estratégia de fazer artístico do artista Marcel Duchamp. Essa estratégia refere-se ao uso de objetos industrializados no âmbito da arte, desprezando noções comuns à arte histórica como estilo ou manufatura do objeto de arte, e referindo sua produção primariamente à idéia.



O ready-made é uma manifestação ainda mais radical da intenção de Marcel Duchamp de romper com a artesania da operação artística, uma vez que se trata de apropriar-se de algo que já está feito: escolhe produtos industriais, realizados com finalidade prática e não artística (urinol de louça, pá, roda de bicicleta), e os eleva à categoria de obra de arte.

O ready-made se caracteriza por uma operação de sentido que faz retornar o literário ao problema da arte, contrariando a ênfase modernista na forma do objeto artístico. O conceito de alegoria retorna na forma de uma operação que a materializa concretamente. E ao adotar tal operação de sentido, Duchamp termina por implicar mais que a obra de arte; é necessário tratar de toda a constelação estética que envolve a obra e da conjuntura de sentido que a produz, mas também a que a sustenta e sanciona.

É o caso de "Fonte", de 1917. Apresentada no Salão da Sociedade Novaiorquina de artistas independentes, constitui-se a partir de um urinol invertido. A operação que o caracteriza é o deslocamento de uma situação não artística para o contexto de arte. Tal operação é marcada por sua apresentação como escultura e assinatura. À inversão física do objeto corresponde a inversão de seu sentido, que se espelha no corpo do espectador. Do mesmo modo, "Porta-garrafas"(1914, readymade) e "Roda de bicicleta" (1913, readymade assistido) tiram partido de um deslocamento e manipulação do objeto para tornar o sentido de sua aparição crítico.


Como em outros casos, está implícito o típico propósito dadaísta de chocar o espectador (o artista, o crítico, o amador de arte), choque que caracteriza a atitude das vanguardas (que necessitam desse choque para reformular o conceito de arte) e persiste frequentemente na arte contemporânea. Mas o ready-made também evidencia sua constituição em uma neutralidade estética, a partir da qual a operação de sentido é proposta : o ready made inicia numa "indiferença visual" : "...a idéia sempre vinha primeiro, e não o exemplo visual", o que é, "...uma forma de recusar a possibilidade de definir a arte." (em Entrevista com Pierre Cabanne)

Uma arte calcada no conceito, que se desenvolve a partir do 'encontro' (rendez-vous), ou seja, do achado fortuito, da blague que dota o objeto de sentido de modo desinteressado, e que, assim, fará com que a obra exista para qualquer sujeito do mesmo modo; em relação à aesthesis, a sensação, o ready made se oferece como fato estético no qual podemos incluir e elaborar nossas experiências, mas que independe da categoria gosto.

Não por acaso, Duchamp afirmaria mais tarde que "será arte tudo o que eu disser que é arte" - ou seja, todo acervo artístico que nos foi legado pelo passado só é considerado arte porque alguém assim o disse e nós nos habituamos a admiti-lo. Donde se conclui que La Gioconda, de Da Vinci, ou O Enterro do Conde de Orgaz, de El Greco, não seriam mais arte do que um urinol ou uma pá de lixo: todos dependem de uma reconstituição atual de seu sentido (como funcionamento da obra), e somente nesse funcionamento, do qual faz parte o sujeito, é que a obra se justifica como arte. Isto é, além de nos indicar que a arte precede e prescinde a maestria formal, o readymade nos faz ver que o objeto deixa de ser arte no momento em que deixa de propor, para si mesmo, novas interpretações – no momento em que deixa de fazer um novo sentido.

Obtido em "http://pt.wikipedia.org/wiki/Ready-made"


I just...can't!

Emudeço




Emudeço. Já de nada me servem as palavras.Chove lá fora e eu, embora tenha despertado com a alma úmida estou seca como uma estalactite cálida. Sou um arabesco sólido e bem concreto de mim mesma. Mas logo eu, que sou tão abstrata? Talvez eu esteja tão além de mim que possa até me ver assim de relance, como quem vê um prisma.Talvez possa até sentir, em minhas mãos, a suavidade vaporosa de seus tons,como quem sente uma pequena camada de gotículas sonoras. Mas tocar, jamais. Estou além. E tudo isso acontece no instante de uma palavra, e acontece com a profundidade da sua sombra.E como essa palavra me é ininteligível, assim como eu sou a mim mesma, esqueço-a. Fico com a sombra. E a minha sombra é o meu silêncio, e esse silêncio se dilata em mim, e eu me sinto então repleta de mim mesma.Esqueço,emudeço, pois temo que eu seja volátil de mim mesma.

sábado, 27 de fevereiro de 2010

Desapego(extraído de aroomatheartbreakhotel.blogspot.com)

Uma mulher senta numa sala de espera. Em suas mão secas e finas tinha um exemplar de uma revista importada "Brain and Health" que o Dr. X trouxe de uma conferência que assistiu em Chicago. Ela continha qualquer dose de Corpus sano, mente sana kind of shit. Um homem entra na sala, que Hannah assiste com particular indiferença. Volta sua atenção à revista, porém com sua indiferença e "blasésice" costumeira. Era tão indiferente a tudo que não importava a mínima se estava em Tóquio, Berlim, Paris ou Massachussets. O que importava é que era algum lugar pequeno demais para suas inquietações (veja bem, eram inquietações, não ambições). Hannah não era mulher de ter grandes ambições. Pelo contrário. A ambição tinha ao seu ver, qualquer coisa de concreto que lhe causava repugnância. Tinha, porém, inquietações. As inquietações não a aprisionavam- pensava-a faziam devagar como uma ébria, percorrer caminhos por ninguém percorridos-com a sua inquietação era como uma grande ave de rapina sem rumo."Talvez eu seja mais feliz do que eu penso..."Seu pensamento peremptório foi friamente interrompido pelo Dr. X a convidando para entrar em sua sala. Ela senta-se. O Dr. X, com olhos inquisitivos, pergunta:
"E então, como você se sente?"
Um sentimento formal a arrebata nesse instante.
"Estou bem...absolutamente..."
"Ótimo.Olha, os resultados dos seus exames estão prontos.Você não tem absolutamente nada.Seu cérebro está limpinho de acordo com a tomografia, e vejo que os sintomas já passaram.Vou-lhe receitar,então, mais 500mg daquela pílula que você já estava tomando...Você já está acostumada e tem tido bons resultados."
Hannah faz que sim com a cabeça, porém sente alguma relutância em aceitar a resolução.
"Dr., não há alguma outra que eu possa tomar pra....pra...sei lá...."
"Pra?"
"Esquece, bobeira minha..."
"Não acho uma boa idéia. Tome este ai mesmo. Qualquer coisa que esteja te incomodando converse com a analista..."
Ao ouvir a palavra "analista" Hannah tem uma ânsia de autocomiseração. Tem um impulso de olhar aos lados pra ver se mais alguém, além dela, a escutou.
"Está bem então..."-pega a receita e deixa a sala.Volta para sua casa, lugar pelo qual ela guardava igual indiferença.Na secretária eletrônica havia duas mensagens.Hannah estranha. "Duas mensagens?!?" E então conclui " Deve ser da analista"-pensa secamente. A sua amargura a havia transformado numa boa adivinha."Hannah, aqui é a Dra. Y, só pra lembrarque amanhã a nossa consulta é às 3. Não se atrase." Mas dessa vez havia algo incomum: "Hannah, minha filha, estou tentando te ligar há horas.Amanhã estarei pela cidade, me dá um toque pra tomarmos um café, algo do tipo. Beijo."
Depois da morte de seu pai, os cafés esporádicos que tomava com sua mãe era o auge da vida social de Hannah. Sua mãe havia se casado novamente e se mudado para qualquer lugar ensolarado que a fizesse esquecer a morte intencional do marido e a amargura indigesta de sua filha. Mas seu instinto materno a culpava por nutrir tal sentimento oco em relação à filha.
Por isso, munia Hannah de uma mesada com a qual pagaria sua analista e os eventuais remédios. Era o preço que pagava pela sua covardia. Ela nunca soubera como lidar com seu falecido marido e muito menos saberia com a filha, por isso se sentia impotente. Assim, Hannah não era uma mulher dada à diálogos.
A sessão de terapia era uma tortura. "Os meus monólogos são muito mais proveitosos."-pensava. E monologar era algo que sabia fazer muito bem. Possuía uma arte retórica peculiar e uma seleção vocabular única para dizer a si mesma o que precisava saber. As palavras muitas vezes a machucavam.
Nesse momento, ela interrompia a atividade introspectiva e tomava uma das pílulas que o médico receitou. E continuava. As pílulas revestiam suas palavras de um tal verniz que elas já não lhe eram mais tão perniciosas. Ela era indiferente a tudo, menos a si mesma. Tomava as pílulas para se suportar, eram uma espécie de sofismo com o qual ela se auto-acessava.

Kinda of blé

Hoje acordei candomblé
Levantei no desespero dos iconoclastas
A fim de destruir altares, escapulários,
Deuses e orixás. Templos, catedrais
E mosaicos medievais.
Peguei cada canto gregoriano,
Cada aleluia, cada amém,
Cada reza, cada lamento
E os reduzi a cacos.
Deus está silencioso?
Ou estará Deus ocioso?
Quis então juntar os cacos,
remendar os pedaços dispersos dos meus sonhos,
Como peças de um quebra cabeça virginal
Mas minha mente hermética e profana
Se ocupou nessa empreitada divina e irresoluta
Sem ver que a umbanda já havia passado.