domingo, 21 de março de 2010

Sermão dos peixes a Santo Antônio

Verse o verso
Remexa
Vire ao avesso
Agite-o bem
antes de usar.
E nele talvez encontre um terço
um cântico dos cânticos,
um meio,
um desvelo.
E se mesmo assim a terra não salgar
Sê inteiro.

sábado, 20 de março de 2010

Parcas

"Laura está atrasada, como sempre"-essas palavras perfuram o ar de uma rispidez, como um falcão que após atingir em cheio sua presa se lança ao chão em voo oblíquo."Se demorar mais o café vai esfriar". "Val, você já devia ter se acostumado com os atrasos da Laura...ela é enrolada, você bem sabe...". Bel estava tesa. Passara um tempo no exterior para completar seus estudos em Psicologia e era a primeira vez que via suas irmãs desde então. "Você não esteve com ela enquanto eu estive ausente?"-arriscou. "Encontrei umas duas vezes só para resolver o lance da papelada e o dinheiro de mamãe. Mas não quero mais falar sobre este assunto. Aborrece-me muito. Sem falar que Laura é muito pedante, enche a boca para dizer que se formou na melhor faculdade de Direito do país e acha que só por isso pode interferir na questão do seguro.Também mamãe deixa tudo na mão dela...". Isabel está cansada. São anos tentando mediar. Pensa que todos os seus anos de estudo foram em vão, e que nem Freud nem Jung poderiam ajudá-la."Val, ela sabe o que tá fazendo. Ela conhece os trâmites. Além do mais, todas vamos receber a nossa parte, disso você pode ter certeza.". Valentina enrubesce. "Vocês sempre passando a mão na cabeça dela...".Isabel lembra-se de um episódio na infância. Era num dia de Natal, e seus pais haviam dado três presentes e propuseram que elas mesmo escolhessem qual queriam, sem saber o que tinha dentro. Valentina foi a primeira a tirar. Era um kit de costura, que vinha com linhas, alfinetes, miçangas e tudo o que tinha direito. Depois tirou Isabel, que ficou com um livro de histórias. E por fim Laura ficou com uma boneca. Ninguém poderia imaginar no que uma simples despretensiosa brincadeira natalina poderia redundar. Laura ficou insatisfeita. Aquela boneca era boba demais, e já era uma "mocinha", grandinha demais para um brinquedo bobo daquele. Bel tentou interferir. "Laurinha, você é nova demais pra brincar com agulha, é perigoso, deixa a Val ficar com a costura, porque ela já é mais velha e vai saber usar...". Aquele foi o seu primeiro contato com a insatisfação crônica de ambas e com a sua imcompetência em fazer elas valorizarem o que lhes era reservado(todos os dias liam uma passagem da Bíblia, embora nunca levassem em consideração a passagem eclesiástica "Eis a sua porção sob o Sol...") Era o gérmen da frustração, o caule irrompido. Esse caule logo desabrochou numa árvore seca e contorcida, em arbusto agreste, quando, no dia seguinte, tomada por um impulso Laura pega uma tesoura e corta abruptamente a flanela que a primogênita vinha tecendo com tanto engenho e arte. Desde então, Valentina desenvolveu o hábito inconsciente(ou talvez transciente?)de se sentir sabotada pela caçula.E agora estavam lá as duas de novo, 23 anos depois. Toca a campainha. É Laura. Valentina já não tem ressentimentos. Tem ress

segunda-feira, 8 de março de 2010

Águas do Rio Lethé

Certo dia Karin senta-se às margens dum rio. Karin gostava de observar o curso do rio, mas não tinha aquela simplicidade automática que leva as pessoas a pensarem clichês-como por exemplo de como a vida se assemelha a um rio e como nós não somos os mesmos a cada instante que passa."Essa simplicidade forjada"-pensava com desdém. "Ora pois, quem quer viver não pensa na vida, apenas vive, vive cada segundo atrás do pensamento, vive o "it"." Karin, apesar de sua origem tcheca, vivia desde os oito anos no Brasil com sua avó para se recuperar dos pulmões. Ninguém nunca disse-lhe ao certo o que tivera dentre todas as pneumas, pleuras e plasmas da vida. A única coisa que sabe é que seus pais estavam ocupados em salvar comunismos e ideologias e lutar por seu país-algo a ver com os russos. Eles tinham expectativas. Enquanto ela só tinha expectorações. Não podia continuar. O Brasil tinha um clima mais propício para pessoas de aspirações tísicas como a dela. Veio com sua irmã mais velha, Ana. Foi com Ana que Karin despertou para a vida-certa vez Ana lia um livro chamado "Água viva" de uma escritora que embora tivesse origem ucraniana também tinha passado maior parte de sua vida em terras brasileiras. E aquele nome " Água viva" lhe despertava particular curiosidade, porém, só mais tarde veio a de fato ler o livro.Lembrou-se que uma vez Ana e sua avó a levaram para conhecer um aquário, e Ana apontou prum aquário cheio de medusas e disse: "Olha Karin, isso que são águas vivas". Karin fascinou-se.Até que seu transe foi cortado pela voz onomatopeial de sua avó: " São animais terríveis. Esses tentáculos queimam que só". A fascinação de Karin foi então tipafiada , estilhaçada instantaneamente por apenas uma onomatopéia fraseal.Desde então nunca mais pensara em águas vivas. Só voltou a pensar nelas nesse momento, perante o rio. "Será que em algum lugar do instante existem tentáculos emaranhados, uma selvageria hídrica e fluida, porém sólida em nos fagocitar e devorar pra si?"- mas logo conclui: " Mas o instante só é arriscado para quem pensa nele, eu estou além e aquém do pensamento-sou como o peixe palhaço andando por entre vis medusas. Sou um todo de pele, sangue e saliva completamente invulnerável às investiduras do instante contra mim. Há em mim qualquer artifício protéico, qualquer glóbulo branco que me protege das armadilhas que o pensamento nos impõe." O melhor mesmo é não pensar em viver. Ou melhor esquecer de pensar em viver.Lembrou-se então dum poeta português- já que há muito havia substituído o ato de pensar pelo de ler-que dizia assim:

"Se alguém pensasse na vida,
Morria de pensamento.
Por isso a vida vivida
É essa coisa esquecida
Entre um momento e um momento."

E pensou:"Pois então, poesia é pensamento?". Por via das dúvidas, fez como que uma concha com as mãos e pegou um bocado de água do rio Lethé e bebeu.

quarta-feira, 3 de março de 2010

Eu coloro (sobre o Tempo defectivo)

Te coloro o dia defectivo. Abolo tudo que põe jaça nessa tua escala cromática exorbitante que eles chamam tempo. E cronológica vou pintando em espasmos sobre a tua face, assim como quem pinta em óleo sobre tela, as tuas horas. Eu coloro. Assim mesmo. Audaciosa e defectivamente. Não me adeqüo. Quando dôo-pois não é fácil viver em autocombustão incessante- demolo. Pois delinqüo? Logo esculpo em rubor os teus minutos.Mas não me exauro. Brando, bramo e explodo em segundos fumegantes.

terça-feira, 2 de março de 2010

Orfeu

Qualquer nervo pulula em mim. Pulula ritmicamente com uma música cega que vem de qualquer cavidade do meu ser. Esse ocaso que sou é apenas a moldura de um vácuo. Vim de terras muito profundas, do Submundo, tragado por uma corola fui arrastado para um emaranhado de vis raízes. No mundo dos vivos essa minha sinfonia não teria resposta no vazio, doce univitelino verde que é o eco dos tons. Já aqui, no Submundo, o vazio tem o seu lugar, tem réplica de sangue, xilema e floema. Aqui a minha música tem o seu lugar. Hades me concedeu gentilmente a beleza do caos, do inacabado, do gasto, do desnutrido, do erodido. E minha música vai causando miasmas e contorções em tudo que toca. Eu não quero mais emergir, eu não quero mais voltar. Tudo lá em cima é um simulacro, e aqui é uma grande argamassa de escuridão e selvageria, mas meus acordes conseguem alcançar a coifa, o ponto último e final de tudo que existe. Um feixe de luz e a vejo enfim. Posso emergir apenas por um caminho uníssono, embora não unilateral.Há vários lados nesse círculo, e então hesito qual lado seguir. Caio na inércia. Eu fico é com a tensão delicada da minha lira,com o frágil equilíbrio de uma membrana tesa.

segunda-feira, 1 de março de 2010




O ready made nomeia a principal estratégia de fazer artístico do artista Marcel Duchamp. Essa estratégia refere-se ao uso de objetos industrializados no âmbito da arte, desprezando noções comuns à arte histórica como estilo ou manufatura do objeto de arte, e referindo sua produção primariamente à idéia.



O ready-made é uma manifestação ainda mais radical da intenção de Marcel Duchamp de romper com a artesania da operação artística, uma vez que se trata de apropriar-se de algo que já está feito: escolhe produtos industriais, realizados com finalidade prática e não artística (urinol de louça, pá, roda de bicicleta), e os eleva à categoria de obra de arte.

O ready-made se caracteriza por uma operação de sentido que faz retornar o literário ao problema da arte, contrariando a ênfase modernista na forma do objeto artístico. O conceito de alegoria retorna na forma de uma operação que a materializa concretamente. E ao adotar tal operação de sentido, Duchamp termina por implicar mais que a obra de arte; é necessário tratar de toda a constelação estética que envolve a obra e da conjuntura de sentido que a produz, mas também a que a sustenta e sanciona.

É o caso de "Fonte", de 1917. Apresentada no Salão da Sociedade Novaiorquina de artistas independentes, constitui-se a partir de um urinol invertido. A operação que o caracteriza é o deslocamento de uma situação não artística para o contexto de arte. Tal operação é marcada por sua apresentação como escultura e assinatura. À inversão física do objeto corresponde a inversão de seu sentido, que se espelha no corpo do espectador. Do mesmo modo, "Porta-garrafas"(1914, readymade) e "Roda de bicicleta" (1913, readymade assistido) tiram partido de um deslocamento e manipulação do objeto para tornar o sentido de sua aparição crítico.


Como em outros casos, está implícito o típico propósito dadaísta de chocar o espectador (o artista, o crítico, o amador de arte), choque que caracteriza a atitude das vanguardas (que necessitam desse choque para reformular o conceito de arte) e persiste frequentemente na arte contemporânea. Mas o ready-made também evidencia sua constituição em uma neutralidade estética, a partir da qual a operação de sentido é proposta : o ready made inicia numa "indiferença visual" : "...a idéia sempre vinha primeiro, e não o exemplo visual", o que é, "...uma forma de recusar a possibilidade de definir a arte." (em Entrevista com Pierre Cabanne)

Uma arte calcada no conceito, que se desenvolve a partir do 'encontro' (rendez-vous), ou seja, do achado fortuito, da blague que dota o objeto de sentido de modo desinteressado, e que, assim, fará com que a obra exista para qualquer sujeito do mesmo modo; em relação à aesthesis, a sensação, o ready made se oferece como fato estético no qual podemos incluir e elaborar nossas experiências, mas que independe da categoria gosto.

Não por acaso, Duchamp afirmaria mais tarde que "será arte tudo o que eu disser que é arte" - ou seja, todo acervo artístico que nos foi legado pelo passado só é considerado arte porque alguém assim o disse e nós nos habituamos a admiti-lo. Donde se conclui que La Gioconda, de Da Vinci, ou O Enterro do Conde de Orgaz, de El Greco, não seriam mais arte do que um urinol ou uma pá de lixo: todos dependem de uma reconstituição atual de seu sentido (como funcionamento da obra), e somente nesse funcionamento, do qual faz parte o sujeito, é que a obra se justifica como arte. Isto é, além de nos indicar que a arte precede e prescinde a maestria formal, o readymade nos faz ver que o objeto deixa de ser arte no momento em que deixa de propor, para si mesmo, novas interpretações – no momento em que deixa de fazer um novo sentido.

Obtido em "http://pt.wikipedia.org/wiki/Ready-made"


I just...can't!

Emudeço




Emudeço. Já de nada me servem as palavras.Chove lá fora e eu, embora tenha despertado com a alma úmida estou seca como uma estalactite cálida. Sou um arabesco sólido e bem concreto de mim mesma. Mas logo eu, que sou tão abstrata? Talvez eu esteja tão além de mim que possa até me ver assim de relance, como quem vê um prisma.Talvez possa até sentir, em minhas mãos, a suavidade vaporosa de seus tons,como quem sente uma pequena camada de gotículas sonoras. Mas tocar, jamais. Estou além. E tudo isso acontece no instante de uma palavra, e acontece com a profundidade da sua sombra.E como essa palavra me é ininteligível, assim como eu sou a mim mesma, esqueço-a. Fico com a sombra. E a minha sombra é o meu silêncio, e esse silêncio se dilata em mim, e eu me sinto então repleta de mim mesma.Esqueço,emudeço, pois temo que eu seja volátil de mim mesma.