quinta-feira, 24 de junho de 2010

Les amants réguliers


"Il me manque le repos, la douce insouciance qui fait de la vie un miroir où tous les objets se peignent un instant et sur lequel tout glisse." Alfred de Musset

O ovo da serpente

"Fashion it thus: that what he is, augmented,
Would run to these and these extremities;
And therefore think him as a serpent's egg,
Which, hatch'd, would as his kind grow mischievous,
And kill him in the shell" William Shakespeare


11 de janeiro de 1923- Os jornais anunciam a invasão das margens do Rühr,centro da produção alemã de carvão, ferro e aço,pelos franceses, que buscavam a compensação financeira que a República de Weimar lhes devia.Cenário:Colapso econômico, desemprego em massa, hiperinflação e, o mais agravante: um povo desiludido. Velhos cansados, jovens fatigados e fartos.Ideologias ocas eclodiam nos quatro cantos do mundo. A única coisa que unia aquela massa volátil era a seara de uma ciência imbuída de uma racionalidade sem pudor. O império da lógica e da técnica lobotomizava o homem massa e o sedava perante as intempéries do progresso. Não tardava a instaurar-se um positivismo amoral.A frenologia voltava-se para o estudo de uma mente cada vez mais desumana.Teóricos de importância já preconizavam o atrofiamento das instituições liberais, que num futuro não muito próximo não seriam mais que órgãos vestigiais num sistema dominado pelo despotismo e pela intolerância. "A democracia pressupõe homogeneidade", e para alcançar essa homogeneidade instaurou-se uma simbiose um tanto ou quanto insólita entre democracia e ditadura. A Carta Magna era como um suicida fundamentalista que porta uma bomba-relógio cuja pólvora era um artigo dessa mesma Constituição, o inflamável Artigo 48.A Constituição se pôs aos ares em nome de sua própria preservação, da preservação de seus preceitos fundamentais frente ao caos social instaurado. Tudo isso fora intuído pelos melhores intelectuais da época, porém nada poderia ser feito, nada poderia aplacar a fúria de uma manada de homens oprimidos, por dez anos sujeitos à degradação e ao peso da culpa pela destruição causada em 1918. Tudo de que precisavam era de um líder que lhes guiasse, que desse sentido a suas vidas miseráveis. A ascensão de uma personalidade carismática era inevitável.Esse cenário demonstra como um povo pode fornecer o vitelo que alimenta o embrião de uma serpente. Como esse ovo se rompeu, e como a serpente tomou proporções colossais, ai já é outra história...

domingo, 20 de junho de 2010

Lá se vai o mago...

Sempre ouvimos dizer que o fogo purifica. Purifica da cegueira, das intermitências da vida, das vicissitudes da morte, e também dos frequentes espasmos que a lucidez nos causa. Reduz a cinzas a ignorância, a cegueira crônica que recai sobre a humanidade, mas deixa incólume a inconsciência. O fogo faz mais, o fogo transforma. A transubstânciação da ignorância na inconsciência. E por inconsciência não se diz fechar os olhos, não ver. Inconsciência é mais uma "transciência" do mundo, é mais não ver o imediatamente óbvio, o imediatamente tátil e ver além do conforto da existência de Deus. Ver é encarar, é "olhar o mundo gravemente, com olhos severos e avaliadores", é levantar do chão.Ao lançar-se sobre suas labaredas e chamas os substratos da vida, encontra seu ponto de fusão e cria um amálgama orgânico entre estes e as intermitências da morte. Essas ligas tornam então a relação entre uma e outra mais palatável para nós, sem a necessidade de uma entidade supra-humana, metafísica que torne plausível o sofrimento. Nós, cegos e carentes de Deus, encontramos em Saramago mais que um escritor, mas um mestre, um mago que sempre procurou nos abrir os olhos. Agora, além de carentes de Deus, estamos carentes de nosso mago, e nos sobra apenas o desejo de que o fogo não apague um homem, mas deixe ardente e viva a sua memória. Que o mundo não fique mais cego.