sábado, 20 de março de 2010

Parcas

"Laura está atrasada, como sempre"-essas palavras perfuram o ar de uma rispidez, como um falcão que após atingir em cheio sua presa se lança ao chão em voo oblíquo."Se demorar mais o café vai esfriar". "Val, você já devia ter se acostumado com os atrasos da Laura...ela é enrolada, você bem sabe...". Bel estava tesa. Passara um tempo no exterior para completar seus estudos em Psicologia e era a primeira vez que via suas irmãs desde então. "Você não esteve com ela enquanto eu estive ausente?"-arriscou. "Encontrei umas duas vezes só para resolver o lance da papelada e o dinheiro de mamãe. Mas não quero mais falar sobre este assunto. Aborrece-me muito. Sem falar que Laura é muito pedante, enche a boca para dizer que se formou na melhor faculdade de Direito do país e acha que só por isso pode interferir na questão do seguro.Também mamãe deixa tudo na mão dela...". Isabel está cansada. São anos tentando mediar. Pensa que todos os seus anos de estudo foram em vão, e que nem Freud nem Jung poderiam ajudá-la."Val, ela sabe o que tá fazendo. Ela conhece os trâmites. Além do mais, todas vamos receber a nossa parte, disso você pode ter certeza.". Valentina enrubesce. "Vocês sempre passando a mão na cabeça dela...".Isabel lembra-se de um episódio na infância. Era num dia de Natal, e seus pais haviam dado três presentes e propuseram que elas mesmo escolhessem qual queriam, sem saber o que tinha dentro. Valentina foi a primeira a tirar. Era um kit de costura, que vinha com linhas, alfinetes, miçangas e tudo o que tinha direito. Depois tirou Isabel, que ficou com um livro de histórias. E por fim Laura ficou com uma boneca. Ninguém poderia imaginar no que uma simples despretensiosa brincadeira natalina poderia redundar. Laura ficou insatisfeita. Aquela boneca era boba demais, e já era uma "mocinha", grandinha demais para um brinquedo bobo daquele. Bel tentou interferir. "Laurinha, você é nova demais pra brincar com agulha, é perigoso, deixa a Val ficar com a costura, porque ela já é mais velha e vai saber usar...". Aquele foi o seu primeiro contato com a insatisfação crônica de ambas e com a sua imcompetência em fazer elas valorizarem o que lhes era reservado(todos os dias liam uma passagem da Bíblia, embora nunca levassem em consideração a passagem eclesiástica "Eis a sua porção sob o Sol...") Era o gérmen da frustração, o caule irrompido. Esse caule logo desabrochou numa árvore seca e contorcida, em arbusto agreste, quando, no dia seguinte, tomada por um impulso Laura pega uma tesoura e corta abruptamente a flanela que a primogênita vinha tecendo com tanto engenho e arte. Desde então, Valentina desenvolveu o hábito inconsciente(ou talvez transciente?)de se sentir sabotada pela caçula.E agora estavam lá as duas de novo, 23 anos depois. Toca a campainha. É Laura. Valentina já não tem ressentimentos. Tem ress

2 comentários:

  1. Sutil, requer sensibilidade para captar a analogia entre a história das três irmãs e as parcas da Mitologia. Delicado texto em que se percebe o papel de cada uma das irmãs no universo familiar, como as moiras, detentoras do destino dos homens.
    O texto nos deixa com gosto de "quero mais". O fim é brilhante, o corte da palavra, fim abrupto da história remete ao corte da vida na tesoura de Átropos.
    Esse é um texto de estilo mais simples, mas não menos profundo.
    Você não pode parar de escrever. Não use a tesoura como Átropos/Laura para cortar esse fio que se está tecendo entre você e seus leitores que podem multiplicar-se. Continue tecendo como Cloto...

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  2. Compactuo com a opinião de Alzira: tem gosto de quero mais.
    Captei uma coisa que não é comentário literário, e sim de vida. Escrever é um ato de coragem e isso não lhe falta; mas é também um mergulho no nosso poço, uma catarse, um modo de viver a vida não vivida, e quem sabe realizar as coisas aparentemente irrealizáveis. Escrever para vc é como montar num cavalo bravo; vc passa um certo receio em soltar as rédeas, normal né? Continue cavalgando e não pare mais o texto no

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