EM NOVA IORQUE
Foi muito por acaso que conheci
Laura pessoalmente. Das noites frias do inverno de Nova Iorque, aquela era
possivelmente a mais amena. Ia descendo a Hudson Street tentando montar esse
intrigante personagem na minha cabeça. O lado direito do meu cérebro vinha com
estereótipos e padrões de pessoas que eu já conhecia, meu lado esquerdo fornecia o inesperado. Não porque pretendia escrever sobre ela, ou
transformá-la em um personagem de cinema, mas porque as ruas de Nova Iorque são
muito propícias para esse tipo de malabarismo mental. Judia, vinda de Washington, quase nômade, que estudara literatura
Yale e trabalhava em uma start up que vende lâminas de barbear, ou algo do
tipo. Pensei por um instante se James Joyce, um de seus escritores favoritos,
se sentiria feliz vendendo lâminas para barbear. Enfim cheguei à 12th Street.
Era um bar muito apertado e cheio. As pessoas em volta tinham um jeito muito
simpático de estarem na sua e não notarem a sua presença. Me senti em casa. Eu
também tenho um jeito muito dócil e simpático de estar na minha e não notar a
sua presença. Um incauto não notaria essa minha camuflática maneira de ser
agradável. Mas isso não é mau, muito
pelo contrário- ficamos todos felizes. E me poupa perguntas inconvenientes.
"Você tá bem?", "Por que triste?", "Quer
conversar?". Pra compor minha imagem, ando sempre com um copo ou long neck
de cerveja na mão. Aí sim viro camarada de todos, fiel escudeira e amiga de
infância. Aí eu posso ser em paz.
Voltando à Laura, logo a reconheci
e ela abriu um sorriso, como que para identificá-la. Só esqueci de avisar-lhe
que, num ambiente como aquele, sorriso não é distintivo. Tanto que não a
reconheci pelo sorriso. Foi pelos cabelos ruivos. Sorri de volta. Começamos a
conversar em itálico - tudo que não é nosso está sempre em itálico. Deve ser
porque tudo que é nosso é ereto, inabalável e infalível, enquanto tudo que nos
é estranho é torto, é itálico.
Laura pergunta com um interesse
quase desdenhoso:
-Então, quais os estereótipos que
você tem dos americanos?
Tive de fazer um baita esforço
para responder àquela pergunta. Por quê? A América sempre esteve tão presente
em minha vida, pro bem ou pro mal. Muitos flashes na minha cabeça. Praticamente
reconstruí a história dos Estados Unidos na minha cabeça- pilgrims, índios,
Thanksgiving, Tea Party, Independência, Kennedy assassinado, o quanto eu
gostava de donuts e bacon, o quanto eu odiei os Estados Unidos por uma grande
parte da minha vida, Hollywood, pessoas que acham que no Brasil se fala espanhol,
Cassavetes, Woody Allen, o quanto eu venerava Woody Allen, 11 de Setembro...11
de setembro! As torres gêmeas! As torres em itálico como a Torre de Pisa. Os
terroristas em itálico. Eu em itálico! De repente passei de itálico para
negrito. Estava em evidência e me sentia compelida a dar uma resposta decente,
sem sentimentalismos:
-Bem...vejo o povo americano como
um povo batalhador. Acho isso admirável.
Eu não estava com cerveja à mão.
Mas Laura se antecipou e me ajudou na minha tarefa de camuflagem. Logo eu já
não era brasileira, tinha esquecido a ajuda dos EUA na ditadura militar e não
me sentia mais oprimida, era um deles.
Aquele copo de cerveja me fez
falar mais e com o inglês pior. O que era itálico desmoronou de vez. Mas outra
vantagem de se ser camuflática e estar bebendo é justamente esta- a comunicação
é sempre possível e interessante. Rebati a pergunta:
- Bem, ouvi dizer que as mulheres
brasileiras dançam muito bem.
Ela já estivera no Brasil, Rio de
Janeiro, por alguns dias e provavelmente não tivera a oportunidade de ver uma
brasileira em ação. Uma mulata. Uma Rita Baiana. Pensei em como eu não sei
sambar, não danço funk carioca e por toda minha infância fiz ballé clássico,
com uma professora francesa. Pensei o quanto eu não pertenço à ideia que as
pessoas no exterior fazem do Brasil. Mas não me sentia americana ou francesa.
Senti primeiro um constrangimento e logo (questão de segundos) uma leve
liberdade em não ser nada, não ter de representar nada, não ter de vir em
itálico. Estava ereta com a segurança de quem é apenas por ser. Eu, mínimo múltiplo comum, como já diria uma música
de uma banda de rock brasileira. No Brasil também tem rock. Sorri.
DE VOLTA AO RIO
O sol brilha com um escárnio
tropical. A displicência do clima do Rio de Janeiro com a minha melancolia é
uma coisa que sempre me irritou. Desde pequena. É como se toda essa luz e calor
fossem um complô - deixo em aberto, aqui, para cada um completar conforme a sua
fé- "de Deus", "dos orixás", "do cosmos", e assim
em diante - para debochar das minhas angústias. Um escárnio tropical. Enquanto
minhas pupilas dilatavam e fechava meus olhos, com dor, me lembrei de um poema:
"Ride ridentes!
Derride, derridentes!
Risonhai aos risos, rimente risandai!
Derride sorrimente!
Risos sobrerrisos - risadas de sorrideiros
risores!
Hílare esrir, risos de sobrerridores
riseiros!
Sorrisonhos, risonhos,
Sorride, ridiculai, risando, risantes,
Hilariando, riando,
Ride, ridentes!
Derride, derridentes!" *
Então pensei como eu gostaria de estar em Londres. Ela seria
solidária e choveria comigo, eu choveria com ela. E quando o Sol finalmente
aparecesse eu sentiria o ciclo das coisas, que tudo tem um sentido e um tempo
para ser. Como no Eclesiastes- "um tempo para chorar, e tempo para rir;
tempo para gemer, e tempo para dançar; tempo para atirar pedras, e tempo para
juntá-las; tempo para dar abraços, e tempo para apartar-se." É tempo de
apartar. Ride, Rio! Derride, derridentes!