segunda-feira, 8 de março de 2010

Águas do Rio Lethé

Certo dia Karin senta-se às margens dum rio. Karin gostava de observar o curso do rio, mas não tinha aquela simplicidade automática que leva as pessoas a pensarem clichês-como por exemplo de como a vida se assemelha a um rio e como nós não somos os mesmos a cada instante que passa."Essa simplicidade forjada"-pensava com desdém. "Ora pois, quem quer viver não pensa na vida, apenas vive, vive cada segundo atrás do pensamento, vive o "it"." Karin, apesar de sua origem tcheca, vivia desde os oito anos no Brasil com sua avó para se recuperar dos pulmões. Ninguém nunca disse-lhe ao certo o que tivera dentre todas as pneumas, pleuras e plasmas da vida. A única coisa que sabe é que seus pais estavam ocupados em salvar comunismos e ideologias e lutar por seu país-algo a ver com os russos. Eles tinham expectativas. Enquanto ela só tinha expectorações. Não podia continuar. O Brasil tinha um clima mais propício para pessoas de aspirações tísicas como a dela. Veio com sua irmã mais velha, Ana. Foi com Ana que Karin despertou para a vida-certa vez Ana lia um livro chamado "Água viva" de uma escritora que embora tivesse origem ucraniana também tinha passado maior parte de sua vida em terras brasileiras. E aquele nome " Água viva" lhe despertava particular curiosidade, porém, só mais tarde veio a de fato ler o livro.Lembrou-se que uma vez Ana e sua avó a levaram para conhecer um aquário, e Ana apontou prum aquário cheio de medusas e disse: "Olha Karin, isso que são águas vivas". Karin fascinou-se.Até que seu transe foi cortado pela voz onomatopeial de sua avó: " São animais terríveis. Esses tentáculos queimam que só". A fascinação de Karin foi então tipafiada , estilhaçada instantaneamente por apenas uma onomatopéia fraseal.Desde então nunca mais pensara em águas vivas. Só voltou a pensar nelas nesse momento, perante o rio. "Será que em algum lugar do instante existem tentáculos emaranhados, uma selvageria hídrica e fluida, porém sólida em nos fagocitar e devorar pra si?"- mas logo conclui: " Mas o instante só é arriscado para quem pensa nele, eu estou além e aquém do pensamento-sou como o peixe palhaço andando por entre vis medusas. Sou um todo de pele, sangue e saliva completamente invulnerável às investiduras do instante contra mim. Há em mim qualquer artifício protéico, qualquer glóbulo branco que me protege das armadilhas que o pensamento nos impõe." O melhor mesmo é não pensar em viver. Ou melhor esquecer de pensar em viver.Lembrou-se então dum poeta português- já que há muito havia substituído o ato de pensar pelo de ler-que dizia assim:

"Se alguém pensasse na vida,
Morria de pensamento.
Por isso a vida vivida
É essa coisa esquecida
Entre um momento e um momento."

E pensou:"Pois então, poesia é pensamento?". Por via das dúvidas, fez como que uma concha com as mãos e pegou um bocado de água do rio Lethé e bebeu.

6 comentários:

  1. Adorei a sua Karin com problemas pulmonares que não tornaram seu pensamento nem um pouco tísico...
    Você sabe estruturar um conto de forma interessante. Usa as suas referências literárias com liberdade, sem perder a autenticidade ou comprometer o ineditismo do que escreve.
    Muito interessante a declaração: "o instante só é arriscado para quem pensa nele, eu estou além e aquém do pensamento-sou como o peixe palhaço andando por entre vis medusas." Genial!
    Enfim, corro para o blog diariamente na esperança de encontrar um novo e fascinante texto.

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  2. Muito bom;
    seu estilo caminha, caminha e vai se solidificando, hehehe
    "Eles tinham expectativas, enquanto ela apenas espectorava." É lindo!
    Existe um caminho que vai se abrindo à sua frente...
    Bjs

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  3. Engraçado o Zeca ressaltar justamente a parte que me lembrou o estilo dele...Quando li pensei: parece coisa do Zeca...
    Excelente Giu!
    Quero descobrir se eu tenho esse tal artifício protéico ou glóbulo branco, quem sabe...

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  4. Interessante!
    Quando li o que o Zeca transecreveu acima, pensei imediatamente: "Nossa, parece o estilo do Zeca!" Haha
    Adorei, Giu!

    Quero descobrir em mim o tal artifício protéico ou glóbulo branco... Excelente e original!

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  5. Epílogo: Karin morreu de tifo 6 meses depois, devido à poluição das águas do Lethé por uma indústrica de cosméticos.

    Rs.
    Brincadeirinha!!!!
    Adorei o texto! Mto envolvente, faz agente pensar e dá vontade de voltar a escrever meus livros. Quem sabe não retomo? Vc pode estar sendo o incentivo para isso.

    Bjin.

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  6. Você nos abandonou! Quero mais! Não pare de escrever, nós merecemos!

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