domingo, 20 de junho de 2010

Lá se vai o mago...

Sempre ouvimos dizer que o fogo purifica. Purifica da cegueira, das intermitências da vida, das vicissitudes da morte, e também dos frequentes espasmos que a lucidez nos causa. Reduz a cinzas a ignorância, a cegueira crônica que recai sobre a humanidade, mas deixa incólume a inconsciência. O fogo faz mais, o fogo transforma. A transubstânciação da ignorância na inconsciência. E por inconsciência não se diz fechar os olhos, não ver. Inconsciência é mais uma "transciência" do mundo, é mais não ver o imediatamente óbvio, o imediatamente tátil e ver além do conforto da existência de Deus. Ver é encarar, é "olhar o mundo gravemente, com olhos severos e avaliadores", é levantar do chão.Ao lançar-se sobre suas labaredas e chamas os substratos da vida, encontra seu ponto de fusão e cria um amálgama orgânico entre estes e as intermitências da morte. Essas ligas tornam então a relação entre uma e outra mais palatável para nós, sem a necessidade de uma entidade supra-humana, metafísica que torne plausível o sofrimento. Nós, cegos e carentes de Deus, encontramos em Saramago mais que um escritor, mas um mestre, um mago que sempre procurou nos abrir os olhos. Agora, além de carentes de Deus, estamos carentes de nosso mago, e nos sobra apenas o desejo de que o fogo não apague um homem, mas deixe ardente e viva a sua memória. Que o mundo não fique mais cego.

Um comentário:

  1. Mobilizar-se pela morte de Saramago, não se paralisar. Diante da estupefação que a morte traz,vc constrói um texto. Um texto em que maneja as palavras com ousadia, em que inova na estruturação, sem medo, tão ao gosto do homenageado. Atitude própria de quem domina a língua.
    Num momento em que a língua portuguesa sofre uma perda, o seu texto me traz alento e a certeza de que o português poderá continuar vivo no futuro. Parabéns pela sensibilidae, pela coragem, pelo belo texto.

    ResponderExcluir