terça-feira, 2 de dezembro de 2014

Sobre Memória Tangerina- Mulheres Legendadas

Há tempos que eu planejava ver Memória Tangerina e que por alguma razão ainda não tinha visto. Podia ser aquela prova para a qual eu precisava estudar, o projeto de monografia que eu precisava esboçar, gravações e reuniões de grupo que eu tinha no meio da semana, decisões que eu tinha de tomar...Enfim, ou seriam essas obrigações cotidianas ou seria um tranca-verso qualquer que me impedia. A vida é cheia desses tranca-versos, e não é só para se mudar de cômodo, não. Existem versos para nos fazer mudar qualquer coisa. Tem aquele específico que é justamente pra nos fazer sair da nossa zona de conforto, tomar a iniciativa e mudar aquilo que queremos em nossa vida. E é esse que, na hora “h”, dá branco. Não porque não o saibamos, mas porque talvez, inconscientemente, não queiramos saber, por medo do incerto- alguns chamarão covardia outros simplesmente instinto de preservação. O filme do Dodô mostra que essa passagem é necessária, e, para que ela ocorra muitas vezes precisamos quebrar uns ovos e assassinar umas Clarices, pois se não não teríamos omeletes. Se precisamos ser fortes para isso? Uma Giulia lá atrás teria respondido convicta que sim. E é aí que Dodô, com um sorriso doce de quem sabe algum segredo e espera que o descubramos por conta própria, e com a altivez de quem está afiançado por um Tarkovsky, nos arrebata. Não, nos não precisamos ser fortes. A fraqueza pode nos ser uma grande aliada. Fraqueza e flexibilidade são atributos da vida. E é a nossa fraqueza, ao contrário do que diz o senso comum, que muita das vezes nos diz “Vamos!”. É a nossa fraqueza que nos embala com Caetano ou Pixies e nos fazer tomar as rédeas de nossas vidas. É a nossa fraqueza que nos diz que nós não precisamos entender, precisamos sentir. Eu, que desdenhava da minha própria fraqueza, agora aprendi a conviver com ela, e hoje, posso dizer que lhe sou grata. Sou grata por todos os “Vamos!” quando minha legenda dizia “Não vou”. Porque o que endureceu não pode vencer. E “Vamos!” é a minha palavra favorita. Obrigada Tarkovsky, obrigada Dodô! Obrigada a todos aqueles cuja sensibilidade dispensa legendas!

sexta-feira, 8 de agosto de 2014

Últimas considerações de um jovem seminarista


Arthur Paiva, 23 anos, estava a um ano de conseguir a batina. Depois da noite de 21 de maio,  ,nunca mais fora visto. Deixara em seu cômodo um bilhete, não sem provocar um impacto na comunidade eclesiástica. Não era que não tivesse fé. Tinha até bastante fé. E nos momentos mais adversos da sua vida. Teve fé quando ficou órfão. Teve fé quando ainda criança teve que trabalhar sem descanso e sem tempo de ser criança. Teve fé quando apanhava de seu tio bêbado, um dos poucos parentes de que tinha conhecimento. Teve fé ainda quando seu único presente de Natal foi uma boneca velha e surrada que sua prima lhe dera, doce criatura, única entre os tais parentes que lhe despertava afeto. Em seu bilhete aponta que havia decidido ser ateu por um motivo prático - descobrira que uma verdade não se sustenta na presença de outra. Uma mentira, contudo, pode muito bem existir com outra. Incontáveis mentiras coexistem. Aliás, não se mata por algo que se supõe mentira, mas, sim, por verdades monumentais.


Ora, Deus não está morto. A sua multiplicidade de representações é que vinha tornando a convivência humana pouco viável.

A população local e colegas de seminário que tanto o estimavam, acreditando estar ele morto, ainda rogam para que estas razões vinguem no momento do derradeiro veredito. Afinal, era um menino bom.



sexta-feira, 4 de abril de 2014

Sentia-se cansada. E já não era mais cansaço de fadiga. É um cansaço de sentir-se desbotar a cada dia um pouco. Um cansaço de não deslumbre. Um cansaço de quem não queria experimentar para não ter de sentir falta. Não é arrepedimento, pois pouco importa se experimentou ou não. E pouco importa- afinal, a vida não é para ser boa, é para caber.

sexta-feira, 14 de março de 2014

Exílio em Terra Natal


EM NOVA IORQUE


Foi muito por acaso que conheci Laura pessoalmente. Das noites frias do inverno de Nova Iorque, aquela era possivelmente a mais amena. Ia descendo a Hudson Street tentando montar esse intrigante personagem na minha cabeça. O lado direito do meu cérebro vinha com estereótipos e padrões de pessoas que eu já conhecia, meu lado esquerdo fornecia o inesperado. Não porque pretendia escrever sobre ela, ou transformá-la em um personagem de cinema, mas porque as ruas de Nova Iorque são muito propícias para esse tipo de malabarismo mental.  Judia, vinda de Washington, quase nômade, que estudara literatura Yale e trabalhava em uma start up que vende lâminas de barbear, ou algo do tipo. Pensei por um instante se James Joyce, um de seus escritores favoritos, se sentiria feliz vendendo lâminas para barbear. Enfim cheguei à 12th Street. Era um bar muito apertado e cheio. As pessoas em volta tinham um jeito muito simpático de estarem na sua e não notarem a sua presença. Me senti em casa. Eu também tenho um jeito muito dócil e simpático de estar na minha e não notar a sua presença. Um incauto não notaria essa minha camuflática maneira de ser agradável.  Mas isso não é mau, muito pelo contrário- ficamos todos felizes. E me poupa perguntas inconvenientes. "Você tá bem?", "Por que triste?", "Quer conversar?". Pra compor minha imagem, ando sempre com um copo ou long neck de cerveja na mão. Aí sim viro camarada de todos, fiel escudeira e amiga de infância. Aí eu posso ser em paz.



Voltando à Laura, logo a reconheci e ela abriu um sorriso, como que para identificá-la. Só esqueci de avisar-lhe que, num ambiente como aquele, sorriso não é distintivo. Tanto que não a reconheci pelo sorriso. Foi pelos cabelos ruivos. Sorri de volta. Começamos a conversar em itálico - tudo que não é nosso está sempre em itálico. Deve ser porque tudo que é nosso é ereto, inabalável e infalível, enquanto tudo que nos é estranho é torto, é itálico.


Laura pergunta com um interesse quase desdenhoso:


-Então, quais os estereótipos que você tem dos americanos?


Tive de fazer um baita esforço para responder àquela pergunta. Por quê? A América sempre esteve tão presente em minha vida, pro bem ou pro mal. Muitos flashes na minha cabeça. Praticamente reconstruí a história dos Estados Unidos na minha cabeça- pilgrims, índios, Thanksgiving, Tea Party, Independência, Kennedy assassinado, o quanto eu gostava de donuts e bacon, o quanto eu odiei os Estados Unidos por uma grande parte da minha vida, Hollywood, pessoas que acham que no Brasil se fala espanhol, Cassavetes, Woody Allen, o quanto eu venerava Woody Allen, 11 de Setembro...11 de setembro! As torres gêmeas! As torres em itálico como a Torre de Pisa. Os terroristas em itálico. Eu em itálico! De repente passei de itálico para negrito. Estava em evidência e me sentia compelida a dar uma resposta decente, sem sentimentalismos:


-Bem...vejo o povo americano como um povo batalhador. Acho isso admirável.


Eu não estava com cerveja à mão. Mas Laura se antecipou e me ajudou na minha tarefa de camuflagem. Logo eu já não era brasileira, tinha esquecido a ajuda dos EUA na ditadura militar e não me sentia mais oprimida, era um deles.


Aquele copo de cerveja me fez falar mais e com o inglês pior. O que era itálico desmoronou de vez. Mas outra vantagem de se ser camuflática e estar bebendo é justamente esta- a comunicação é sempre possível e interessante. Rebati a pergunta:


- Bem, ouvi dizer que as mulheres brasileiras dançam muito bem.


Ela já estivera no Brasil, Rio de Janeiro, por alguns dias e provavelmente não tivera a oportunidade de ver uma brasileira em ação. Uma mulata. Uma Rita Baiana. Pensei em como eu não sei sambar, não danço funk carioca e por toda minha infância fiz ballé clássico, com uma professora francesa. Pensei o quanto eu não pertenço à ideia que as pessoas no exterior fazem do Brasil. Mas não me sentia americana ou francesa. Senti primeiro um constrangimento e logo (questão de segundos) uma leve liberdade em não ser nada, não ter de representar nada, não ter de vir em itálico. Estava ereta com a segurança de quem é apenas por ser. Eu, mínimo múltiplo comum, como já diria uma música de uma banda de rock brasileira. No Brasil também tem rock. Sorri.



DE VOLTA AO RIO


O sol brilha com um escárnio tropical. A displicência do clima do Rio de Janeiro com a minha melancolia é uma coisa que sempre me irritou. Desde pequena. É como se toda essa luz e calor fossem um complô - deixo em aberto, aqui, para cada um completar conforme a sua fé- "de Deus", "dos orixás", "do cosmos", e assim em diante - para debochar das minhas angústias. Um escárnio tropical. Enquanto minhas pupilas dilatavam e fechava meus olhos, com dor, me lembrei de um poema:


"Ride ridentes!

Derride, derridentes!

Risonhai aos risos, rimente risandai!

Derride sorrimente!

Risos sobrerrisos - risadas de sorrideiros risores!

Hílare esrir, risos de sobrerridores riseiros!

Sorrisonhos, risonhos,

Sorride, ridiculai, risando, risantes,

Hilariando, riando,

Ride, ridentes!

Derride, derridentes!" *



Então pensei como eu gostaria de estar em Londres. Ela seria solidária e choveria comigo, eu choveria com ela. E quando o Sol finalmente aparecesse eu sentiria o ciclo das coisas, que tudo tem um sentido e um tempo para ser. Como no Eclesiastes- "um tempo para chorar, e tempo para rir; tempo para gemer, e tempo para dançar; tempo para atirar pedras, e tempo para juntá-las; tempo para dar abraços, e tempo para apartar-se." É tempo de apartar. Ride, Rio! Derride, derridentes!

*"Encantação pelo riso", do poeta russo Velimir Khlebnikov. Tradução de Haroldo de Campos