domingo, 17 de julho de 2011

Visita inesperada(ou ne me demandez comment)

Eu nunca fui dessas pessoas muito crédulas. Cética até, alguns diriam. Ainda mais no que diz respeito a viagens no tempo. E, enquanto a ciência não se aperfeiçoa até chegar ao ponto de comprovar a possibilidade de transporte intertemporal, essa missão escapa à lógica dos cientistas, e só pode recair na (falta de?) lógica dos artistas. Eles, sim, dominam essa tarefa, muito bem, e vão além das fronteiras tênues entre passado, presente e futuro. Foi assim que ele se apresentou a mim. Logo o reconheci, e por isso fiquei tão estarrecida. E ele parecia muito confortável com aquela situação, de aparecer assim na minha sala de repente. “Qui etiéz-vous?”, disse. Já conseguia distinguir algumas expressões de curiosidade em seu semblante. “Où suis-je?”. Ele falava português, mas nos sonhos da gente, não importa a língua que se fale, a gente sempre entende tudo e sempre se faz entender. É como se houvesse um esperanto, uma língua universal dos sonhos. É uma linguagem tátil, não propriamente falada, guiada pelos instintos, não por uma racionalidade sintática ou semântica propriamente dita. O esperanto onírico. Fato é que respondi e ele me entendeu perfeitamente bem.
“Brasil, século XXI”- eu disse. “Errou o caminho?”.
“Na verdade, não. Qualquer lugar serve. Je n’ai aucun bût dans ma voyage”.
“Tá certo então. Você pode ficar comigo até saber. Eu também tô perdida. Quer alguma coisa? Você deve estar cansado, essas viagens através de espelhos nos consomem muito.”
“O que há com você, ma garce?”- perguntou, ignorando a minha hospitalidade.
“Muita coisa. Estou cursando Direito e não sei se é isso que eu quero pra minha vida. Quando entrei pensava em ser juíza. Isso me deixa angustiada. Se lembra do que o Heurtebise lhe disse depois que o condenou? Que ele e a Princesa foram condenados a le pire dês châtiments: juger lês autres, être des juges.”
“Bien Sûr, é terrível. Ma, nossa, como você se lembra dessas coisas?! Nem eu lembro, depois de tanto tempo, e eu já estou morto há muito tempo.”
“Finja chorar, pois um poeta apenas finge estar morto”
“Uau. Fui eu mesmo quem disse isso?”
“Absolument”
“E por que a faculdade não te agrada?”
“Ah...eu queria ser que nem você, um espírito livre, uma artista completa, sabe? Mas eu não tenho talento pra nada mesmo. Eu sinto que tenho muito o que dizer ao mundo, e tenho esse ímpeto latente para me expressar.”
“Tenho uma solução pra você.”
“Qual?”
“Faça sentenças em poemas. No fundo, há certa beleza em se ser juiz. A culpa e a inocência têm nuances e matizes que só um verdadeiro artista pode discernir. Não são mera oposição binária, mas se confundem. Assim como a vida e a morte. Eu, por exemplo, fui condenado por inocência, fingi estar morto quando estava mais vivo que nunca. E todos os artistas já nasceram condenados. Se não,não seriam artistas.”
“Caramba, não tinha pensado nisso. Acho que não é tão ruim assim como me parecia. Sinto-me bem melhor. Merci, seigneur L’artiste. E o que o traz aqui? Ordens da Princesa? Ou ordens que ordenaram a Princesa a lhe ordenar? Nossa, o outro mundo é cheio dessas hierarquias. E eu que achava que aqui é que a gente tinha muitas ordens.”
“Dessa vez não. Como você bem sabe, fui condenado a viver. E assim sucedeu. Lembra do Radiguet?”
“Raymond? Vi que você eram bem próximos quando pesquisei na Wikipédia.”
“Wikipédia?”
“Ah, sim. Depois lhe explico. É complexo. Coisas da contemporaneidade. Ele morreu de febre tifóide, né?”
“Pour Dieu, você sabe de tudo. Sim, e é por esse exato motivo que eu estou aqui. Não ia aguentar ficar em Paris, depois daquilo tudo.”
“Melhor assim, pelo menos você não se vicia em ópio.”
“Ópio? Eu me viciei em ópio?”
“Sim, ué. Espero que você não tenha trazido. Hoje em dia essas coisas dão problema. Aí você seria condenado a uma coisa bem pior- à cadeia.”
Ele riu e respondeu:
“Vocês, desse mundo, têm penas tão elementares. Já imaginou? Prisão... Bem...não trouxe nada, só essa flor que o Cègeste me deu. É o meu sangue.”

“Além do que, nós temos, hoje em dia, drogas bem melhores pra curar a perda de alguém que a gente ama. E são legalizadas. Os benzodiazepínicos, tipo Valium. Ou mesmo Prozac.”
“Você também perdeu alguém?”
“Claro. Não por morte, mas enfim...Não vamos falar sobre isso agora.”
“E onde se conseguem esses tais benzodiazepínicos?”
“Precisa de receita médica. De um psiquiatra, de preferência.”
“Ah, claro. E onde encontro psiquiatras aqui?”
“Encontrar é fácil, só que dá muito trabalho. E provavelmente vão fazê-lo ir a um psicanalista primeiro. E você vai ter que contar sua vida inteira pra eles, sua infância, se for freudiano, seus sonhos, se for jungiano e por aí vai...E, no fim das contas, seus problemas se resumem à falta de amor de mãe. Sempre a mãe. Vamos fazer o seguinte: a gente pula essa parte chata e eu lhe dou um pouco do Rivotril que sobrou.Você vai se sentir melhor. Eu sei como é ruim o que você tá passando.”
“Obrigada pela compreensão, chérie. Agora me conta dessa tal Wikipédia. Fiquei curioso.”
“É um site. É só acessar a internet e... puf. Vamos lá, no meu quarto, que eu lhe mostro o que é.”
Ele ficou olhando fixamente para o meu computador, absorto, e disse “Eu tenho de mostrar isso ao Duchamp.” Passei horas mostrando pra ele as maravilhas da internet e do mundo moderno. Ele ficou estupefato com a velocidade da troca de informações e, quando eu disse que poderia saber na mesma hora de alguma coisa acontecida na Rússia, ou mesmo me comunicar com alguém na Nova Zelândia, ele exclamou - “Surréel”. Eu, obviamente, ri. Depois mostrei vídeos dos filmes dele no Youtube e ele ficou extasiado. Notei sua satisfação em ver que não o haviam esquecido e comentei: “Viu? Você tinha razão. Um poeta apenas finge estar morto.”
O Facebook, então, foi uma festa. Fui mostrando pra ele o perfil de umas pessoas e ele quis dar like em alguns posts, até que exclamou- “Surréel”. Eu, obviamente, novamente, ri. Disse que não tinha uma foto decente pra põr no meu perfil. “Se você quiser, eu falo com o Ray. Ele é ótimo e tenho certeza que vai fazer uma foto ótima pro seu perfil”. Imagina, eu, com uma foto feita pelo Man Ray?

Todas essas novidades pareciam fazê-lo se esquecer do seu sofrimento, pelo menos por um momento. Mas não tardou pra que a tristeza voltasse a fazer casa em seu espírito anacrônico. Derramou algumas lágrimas. O que desencadeou isso tudo? La solitude, de Barbara. Elle a dit: "Ouvre-moi ta porte.Je t'avais suivie pas à pas.Je sais que tes amours sont mortes.Je suis revenue, me voilà. Comecei a chorar também.Sempre lês amours mortes. Sempre. A causa motora de toda a infelicidade do mundo.Vendo minhas lágrimas ele perguntou:
“Fomos separados pela morte. E você? O que a impede?”
“A vida”- redargui
“Vejo que seu caso é mais complicado que o meu, então.”
“Sem dúvida”
“Sabe de que você precisa?”
“De quê?”
“Autoconfiança. D’avoir confiance en toi-même.”
“Já me disseram isso. Várias vezes, aliás. Deve ser por isso que fui parar numa daquelas psicanalistas sobre que lhe falei.”
“E precisa disso? Eu lhe digo: tenha confiança em si mesma e se expresse, de qualquer forma. Tenho certeza que vai dar tudo certo pra você. Se não, é como a Princesa disse a Cegèste: buvons”
Ele me ajudou tanto com aquela longa conversa, que eu queria retribuir de alguma forma. Queria aplacar a dor dele, assim como ele aplacava a minha. Até que eu tive uma ideia. Foi no dia em que ele ia partir. Era inevitável que ele voltasse pro tempo dele.
“Já sei!!”
“Quoi?”
“Como o ajudar. Tava pensando muito naquilo de amours mortes. Até que pensei numa solução pra você. Você vai voltar para o tempo anterior à morte do Radiguet, certo?”
“Certo, mas...e aí...?”
“Então. Amoxilina. É isso!”
“Amoxilina?”
“É! Quer ver?”
Abri um site que falava sobre a febre tifóide.
“Wikipédia?”- ele perguntou.
“Não, a Wikipédia não é segura pra esse tipo de coisa séria, como doenças. Vou a um site científico.”
Fui lendo pra ele:
“A febre tifóide é uma doença infectocontagiosa causada pela bactériaSalmonella typhi. Trata-se de uma forma de salmonelose restrita aos seres humanos e caracterizada por sintomas sistêmicos proeminentes...As aminopenicilinas (ampicilina e amoxicilina) e o sulfametoxazol-trimetoprim (SMZ-TMP) são drogas eficazes para o combate da S. typhi, apresentando um melhor perfil de toxicidade quando comparadas ao cloranfenicol.”
“É isso! Eu lhe falei! É a amoxilina!”
Peguei uma receita médica com um amigo meu. Não disse os motivos, ele nunca acreditaria. Dei o motivo mais esdrúxulo possível, disse que estava por perder por falta na faculdade e que não poderia me ausentar de mais aulas por causa de uma faringite. Implorei para ele me receitar amoxilina. Ele me deu a receita. Fui até a farmácia e comprei o tal antibiótico.
Cocteau olhava inquieto pra caixa do remédio. Provavelmente pensava: “Tenho que pintar isso?” ou “Tenho que mostrar pro Duchamp?”.
Enfim, fato é que chegou o momento da despedida. Expliquei pra ele como deveria administrar o remédio, e que ele deveria dar de 12 em 12 horas, sem atraso. Se atrasasse, ele que desse um jeito de desobedecer às ordens do outro mundo e voltar algumas horas no tempo. Sem que a Princesa soubesse, claro. Disse isso com os olhos cheios d’água. Ele também e, emocionado, disse:
“Obrigada por tudo, petite.Vous êtes une phoenixologiste, como diria Cégèste.”
“Já sei. A ciência de morrer e renascer.”
“Exato. Aliás...isso me lembra...tenho uma coisa pra lhe dar também.”

Enfiou as mãos no bolso e tirou uma flor. A flor estava morta. Continuou:
“Como você deve saber esta flor está morta. Mas, como eu disse, você é um fenixologista. Você vai fazer essa flor voltar à vida. Só tem que esperar o momento certo. Essa flor, de agora em diante, representa os seus amours mortes. Quando eles renascerem, ela vai renascer também. E é, surtout, um símbolo da minha gratidão.
”Abraçamo-nos forte antes dele desaparecer completamente. Eu com a flor na mão e ele com uma caixa de amoxilina.
Um dia aconteceu. Acordei de manhã e a flor estava lá, com uma vivacidade fulgurante.

Depois de um tempo recebi um e-mail do Cocteau( ne me demandez comment) dizendo que Radiguet tinha se recuperado bem. E falou que tinha certeza que eu conseguiria reavivar a flor, assim como meus amores, e que estava feliz por mim. E orgulhoso por eu ter passado na prova da magistratura. Contou também que Duchamp havia encontrado a caixa do antibiótico na lixeira e a colocou sobre um mictório. Foi um sucesso, segundo ele. Depois entendi o porquê dele enviar um e-mail: ele e Radiguet foram fazer uma viagem de férias pelo ano 2030. Pouco tempo, só pra desanuviar-fechou ele.

sábado, 11 de junho de 2011

Do conselho- pt 2

Repara
Não separa
O que não agrada- apara.

segunda-feira, 30 de maio de 2011

Do conselho

seja
enseja
mas não despeja
se fraqueja.

quinta-feira, 24 de março de 2011

Chafurdar( ou da inquietação de um causídico)

“Os escrotos estão em toda parte”- dizia. Dizendo isto, Vautrin ajeitava os óculos que pairavam sobre seus pequenos e foscos olhos. “No Direito não será diferente. A única diferença é que o Direito é uma escrotidão institucionalizada, oficializada, e não aceita nenhum tipo de escrotidão paralela. A lei não é nada. Muitos teóricos já discorreram sobre esta falha, você já deve ter estudado. Lassale proferiu em sua célebre palestra de 1862 que a Constituição não seria mais do que um pedaço de papel. Bem antes, em 1651, Hobbes já salientava que os pactos sem a espada não passam de palavras. E os escrotos do Direito têm o respaldo da espada e compactuam tacitamente com a opressão das classes mais baixas da sociedade, a saber, os escrotos que não têm dinheiro”. Essas palavras, à primeira vista, parecem brutas para um jovem estudante, pronto a desbravar trilhas, entre artigos, incisos e alíneas trêmulas, vacilantes, e ostentar bandeiras em nome da justiça. Alea jacta est. Talvez Vautrin estivesse certo, talvez não. Talvez seus pequenos olhos opacos guardassem tamanha experiência e sabedoria, e por isso fossem opacos. O reflexo dos óculos ainda disfarçava essa tenaz amargura, como um feixe de esperança. Será? Não pretendo me corromper com o sistema ou compactuar com a escrotidão promulgada.E talvez ainda tenha muito o que aprender. Alea jacta est.

OBS: Vautrin vem do francês se vautrer(chafurdar). O nome vem da obra Le Père Goriot de Honoré de Balzac.

sábado, 12 de março de 2011

Camafeu

Ah, se eu pudesse te levar como quem porta consigo no bolso um camafeu de engenhosa ourivesaria, feito de delicado ouro e rocha ígnea... Você tem em si o vulto de um gesto, o tilintar que existe do choque entre o momento-agora e o momento-por-vir e ainda a agrestia em estado bruto,como que barro.

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

Da inquietude simbiótica

Seria eu um líquen ancestral que brota ao acaso na noite, passado o ocaso, lançando seus esporos em forma de estrelas? Talvez a brisa lunar os leve e os faça germinar numa planície longínqua, porém úmida e uterina, até que se forme uma grande malha de hifas entrelaçadas, um gentil toldo de vida primitiva sob a chuva, sob cumulus nimbus, o mau tempo e as intempéries dos Deuses?A minha parte alga pede corpo, minha parte fungo pede alma. Eu digo “calma”.

segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Sobre a embriaguez

Então, escrevo com calma. Se outrora, escreveria este texto com uma pena e mancharia as pontas dos meus dedos de tinta, sentindo seu sabor pelo tato. Sentiria meu texto pelo tato, uma espécie de braile para quem pode ver. Não ver, fitar. Sorver. Observar. Perceber a vibração com acuidade. A vida é um jogo sádico de espaço-tempo no qual o que nos importa não é saber como jogar, como mover nossas peças, mas quem fez as regras- se Deus, ou o Diabo, ou quem sabe alguma outra divindade qualquer. Que importa se um cavalo vale mais que dois peões? -B7. Que importa se o bispo só anda na diagonal?- D4. O que importa é proteger o rei-C9. Permaneço impassível e inerte nesse tabuleiro. Que me importa o teorema de Pitágoras, o binômio de Newton e até mesmo a Vênus de Milo? Que me importam Césares, Napoleões, Churchills, impérios, fronteiras, raças e credos?Xeque. Preciso me ater a Buddhas, Alás, Jeovás, Deuses, a mono ou politeísmos, entidades que se exibem em diversas formas. Atenho-me a eles porque é preciso proteger o rei. E pra proteger o rei é preciso ter o timing certo pra fazer a jogada certa-G3. “Omnia tempus habent et suis spatiis transeunt universa sub cælo” -“Tudo tem o seu tempo determinado, e há tempo para todo o propósito debaixo do céu.”, dizia o Eclesiastes. Vivo em nunc-stans, e portanto há tempo para todo o propósito.É o meu refúgio. Vivo no tempo messiânico de Benjamin, onde tudo acontece simultaneamente, daí não sinto o tempo passar. Acho que deve ter sido isso que Baudelaire quis dizer quando escreveu incitando as pessoas a embriagarem-se, de vinho, poesia, ou virtude, para não sentirem o fardo do tempo. A embriaguez é o meu nunc-stans. Graças a ela meu rei está resguardado, enquanto meus peões, cavalos e bispos singram pelo tabuleiro. Apenas ainda não me decidi de quê - de vinho, poesia ou de virtude.