sábado, 27 de fevereiro de 2010

Desapego(extraído de aroomatheartbreakhotel.blogspot.com)

Uma mulher senta numa sala de espera. Em suas mão secas e finas tinha um exemplar de uma revista importada "Brain and Health" que o Dr. X trouxe de uma conferência que assistiu em Chicago. Ela continha qualquer dose de Corpus sano, mente sana kind of shit. Um homem entra na sala, que Hannah assiste com particular indiferença. Volta sua atenção à revista, porém com sua indiferença e "blasésice" costumeira. Era tão indiferente a tudo que não importava a mínima se estava em Tóquio, Berlim, Paris ou Massachussets. O que importava é que era algum lugar pequeno demais para suas inquietações (veja bem, eram inquietações, não ambições). Hannah não era mulher de ter grandes ambições. Pelo contrário. A ambição tinha ao seu ver, qualquer coisa de concreto que lhe causava repugnância. Tinha, porém, inquietações. As inquietações não a aprisionavam- pensava-a faziam devagar como uma ébria, percorrer caminhos por ninguém percorridos-com a sua inquietação era como uma grande ave de rapina sem rumo."Talvez eu seja mais feliz do que eu penso..."Seu pensamento peremptório foi friamente interrompido pelo Dr. X a convidando para entrar em sua sala. Ela senta-se. O Dr. X, com olhos inquisitivos, pergunta:
"E então, como você se sente?"
Um sentimento formal a arrebata nesse instante.
"Estou bem...absolutamente..."
"Ótimo.Olha, os resultados dos seus exames estão prontos.Você não tem absolutamente nada.Seu cérebro está limpinho de acordo com a tomografia, e vejo que os sintomas já passaram.Vou-lhe receitar,então, mais 500mg daquela pílula que você já estava tomando...Você já está acostumada e tem tido bons resultados."
Hannah faz que sim com a cabeça, porém sente alguma relutância em aceitar a resolução.
"Dr., não há alguma outra que eu possa tomar pra....pra...sei lá...."
"Pra?"
"Esquece, bobeira minha..."
"Não acho uma boa idéia. Tome este ai mesmo. Qualquer coisa que esteja te incomodando converse com a analista..."
Ao ouvir a palavra "analista" Hannah tem uma ânsia de autocomiseração. Tem um impulso de olhar aos lados pra ver se mais alguém, além dela, a escutou.
"Está bem então..."-pega a receita e deixa a sala.Volta para sua casa, lugar pelo qual ela guardava igual indiferença.Na secretária eletrônica havia duas mensagens.Hannah estranha. "Duas mensagens?!?" E então conclui " Deve ser da analista"-pensa secamente. A sua amargura a havia transformado numa boa adivinha."Hannah, aqui é a Dra. Y, só pra lembrarque amanhã a nossa consulta é às 3. Não se atrase." Mas dessa vez havia algo incomum: "Hannah, minha filha, estou tentando te ligar há horas.Amanhã estarei pela cidade, me dá um toque pra tomarmos um café, algo do tipo. Beijo."
Depois da morte de seu pai, os cafés esporádicos que tomava com sua mãe era o auge da vida social de Hannah. Sua mãe havia se casado novamente e se mudado para qualquer lugar ensolarado que a fizesse esquecer a morte intencional do marido e a amargura indigesta de sua filha. Mas seu instinto materno a culpava por nutrir tal sentimento oco em relação à filha.
Por isso, munia Hannah de uma mesada com a qual pagaria sua analista e os eventuais remédios. Era o preço que pagava pela sua covardia. Ela nunca soubera como lidar com seu falecido marido e muito menos saberia com a filha, por isso se sentia impotente. Assim, Hannah não era uma mulher dada à diálogos.
A sessão de terapia era uma tortura. "Os meus monólogos são muito mais proveitosos."-pensava. E monologar era algo que sabia fazer muito bem. Possuía uma arte retórica peculiar e uma seleção vocabular única para dizer a si mesma o que precisava saber. As palavras muitas vezes a machucavam.
Nesse momento, ela interrompia a atividade introspectiva e tomava uma das pílulas que o médico receitou. E continuava. As pílulas revestiam suas palavras de um tal verniz que elas já não lhe eram mais tão perniciosas. Ela era indiferente a tudo, menos a si mesma. Tomava as pílulas para se suportar, eram uma espécie de sofismo com o qual ela se auto-acessava.

Kinda of blé

Hoje acordei candomblé
Levantei no desespero dos iconoclastas
A fim de destruir altares, escapulários,
Deuses e orixás. Templos, catedrais
E mosaicos medievais.
Peguei cada canto gregoriano,
Cada aleluia, cada amém,
Cada reza, cada lamento
E os reduzi a cacos.
Deus está silencioso?
Ou estará Deus ocioso?
Quis então juntar os cacos,
remendar os pedaços dispersos dos meus sonhos,
Como peças de um quebra cabeça virginal
Mas minha mente hermética e profana
Se ocupou nessa empreitada divina e irresoluta
Sem ver que a umbanda já havia passado.